sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A vida não é um treinamento!

Há um mês fui ao show do Roger Waters pela terceira vez. Amo Pink Floyd desde a adolescência, quando ouvi por acaso uma de suas músicas (Echoes)tocando na vitrola do irmão de uma amiga. Senti na ocasião que aquele som falava de mim, sobre mim, para mim. Como se toda a dor, tristeza e angústia que eu sentia e não sabia explicar, fossem magicamente definidas naquele som, naquela melodia. E assim vem acontecendo desde então... No show, Roger fez várias homenagens ao amigo e parceiro de banda - Syd Barret, que enlouqueceu muito jovem e viveu décadas recluso. Quando Roger cantou "Wish you were here" em homenagem ao amigo que há décadas não estava mais aqui, ele falou sobre perder-se e sobre perder alguém que amamos, pra morte ou não. Então Roger conclui o título do show "A vida não é um treinamento". Chorei muito. Chorei pelo Roger que carrega essa falta, chorei por mim e por tantas faltas que carrego. Chorei porque sempre estou a um passo de me perder, desde sempre. Muito antes de ser psicóloga ou entender qualquer coisa sobre saúde mental já temia a loucura. Não usei drogas porque, intuitivamente, achei que me levariam à loucura. Criei desde cedo um universo paralelo para o qual me transportava nos momentos de angústia insupotável, como Alice e seu louco país ou a menininha de Labirinto do Fauno. Esse mundo à parte me salvou muitas vezes. Desde o sufoco de suportar reuniões familiares que me faziam mal desde muito cedo, até aguentar algumas horas de missa que meus pais me obrigavam a frequentar. Meu mundo particular era tão bom que às vezes me desligava propositalmente do mundo real. Acho que por isso sempre entendi tão bem as psicoses, pois viver integralmente mergulhado nesse mundo que estamos deve ser insuportável. Mas a loucura nunca me pegou. Sempre controlei minhas entradas e saídas no meu mundo da imaginação e sempre voltava. Em compensação, passei a vida entrando no universo da depressão sem querer ou controlar. Desde muito nova era engolida por essa tristeza sem motivo, essa desesperança, um vazio e falta de sentido constantes e um pensamento de que a morte não seria tão ruim assim. Lembro-me que durante a catequese imposta pelos meus pais tive que fazer a primeira confissão para a primeira comunhão. Durante dias pensei o que diria, porque não me achava pecadora, não fazia nada de errado na minha concepção. Tentei ensaiar, mas não vinha nenhuma ideia. Fui ao confessionário, sem ver o padre e espontaneamente falei: "Acho que meu pecado é viver triste, porque tenho tudo e sou infeliz". A prescrição foi ave-marias e pai-nossos. Eu tinha 10 anos e já era deprimida. Demorei mais de 30 anos para ser diagnosticada e medicada. Hoje meu diagnóstico é distimia: um tipo de depressão crônica incapacitante, que tem com característica a irritabilidade e mau humor, além de outros sintomas. Essa sou eu. Ao longo da vida, fui muitas vezes chamada de pessoa difícil, menininha irritada, mal humorada, aquela que tudo chora, criatura sensível demais... Cresci me achando tudo isso e ainda ingrata, insatisfeita sem razão, desagradável. Quanto mais me sentia triste, mais era julgada e mais me sentia triste. Aprendi a disfarçar. Como era bonita, com grandes olhos verdes, fui fazendo da aparência agradável uma boa máscara para a personalidade desagradável. E as pessoas caíam... Fui achando sozinha formas de suportar a vida, de não me perder de vez. Namorava muito, curtia a praia, ouvia Pink Floyd... Sobrevivia mais um dia e outro e outro. Mas sempre e desde sempre tinha uma ideia de que a morte era melhor do que tudo isso. Enquanto na infância minhas primas sonhavam em ser mães e esposas, eu queria achar uma forma de fugir. Na adolescência, essa fuga foi ganhando corpo e decidi que aos 18 anos sairia pelo mundo viajando sozinha. Imaginava que seria uma passeio curto e intenso, que me levaria ao fim. E ao alívio. Mas, como nunca andei só e proteção ancestral, divina e espiritual nunca me faltou, aos 18 anos engravidei. E a viagem que seria rumo ao mundo e à morte, foi para outro Universo chamado maternidade. Pela primeira vez eu sentia vontade de viver e a vida fazia alguma sentido para além do meu mundo imaginário e das minhas fugas. A maternidade nunca foi um sonho, um plano. Mas justo ela foi a salvação. Olhar meu filho, sentir seu cheirinho, amamentá-lo, ver seus primeiros passos, ouvir mamãe, dizer eu te amo de uma forma que eu nunca tinha conseguido me fez viver. Acho que nasci mesmo nesse dia - 12/11/1995. Mas... salvação não é cura e depressão não tem cura. Sou mãe há 28 anos e amo muito tudo isso. Mas sou depressiva há 47 e já entendi que serei assim para sempre. Sigo achando formas e motivos para não me perder na dor. Guimarães Rosa diz "Felicidade se acha é em horinhas de descuido". Embora eu ame o Sr Rosa e ler "Grande Sertão: Veredas" foi uma das maiores felicidades da minha vida, eu discordo. Para um deprimido, achar horinhas de felicidade exije um empenho, foco e até esforço. Na distração, só a infelicidade e desesperança tem vez. Eu passo a vida tentando achar essas pequenas coisas que me salvam: um bom show de rock, músicas do Pink Floyd e do Racionais, sentir o cheiro do meu filho já adulto e olhar seus olhos que sorriem. Entrar no mar, sentir o Sol. Ler Clarice e Ryane Leão. Assistir Na Natureza Selvagem. Há alguns anos achei uma dessas coisas que me impedem de desistir: a macumba. Descobri o terreiro, o batuque, Exu e tantas outras belezuras que existem na Umbanda. Em cada atendimento com Exu Tiriri, Caboclo ou Pretos Velhos eu um resgato um tiquinho da minha saúde mental. Quanto ouço o batuque e canto bem alto "é Laroye, é Laroye. É Mojubá, é mojubá" tenho vontade de viver. Na última consulta com a Vovó Maria Conga chorei tanto, acho que as lágrimas que engoli a vida toda vieram abaixo ali. Ela me abraçou, rezou e me fez sorrir. Saravá às almas!!! Mas a depressão/ distimia é igual carrapato, grudenta. Você toma remédios, ela solta, mas logo o efeito passa e ela volta de novo e de novo e de novo. Há 1 ano e meio sofri uma queda, fratura exposta, muita dor, cirurgia e uma limitação física eterna. Tornei-me em seguida PCD. Minhas amigas mais próximas, que também me salvam de novo e de novo, preocuparam-se como eu lidaria com essa nova condição. Na hora em que ganhei oficialmente este carimbo confesso que pensei mais nas coisas concretas: habilitação, carro com desconto, carteirinha PCD, etc. Hoje, entendo melhor a limitação. Já não consigo caminhar muito (concreta e simbolicamente), sinto dores constantes e às vezes tenho crises (como nessa semana) e tenho medo de tornar-me dependente. A independência é uma das minhas maiores paixões. Nessa última crise de dor, senti de novo vontade de perder-me. Nenhum remédio parecia melhorar aquilo, eu não conseguia me locomover e coisas básicas como respirar ou urinar pareciam fatais. Já ouvi muitas adolescentes relatando que se mutilavam porque a dor física minimizava a dor emocional. Não sei como. Minhas dores físicas me deixam ainda mais deprimida. As limitações que elas causam aumentam a minha constante desesperança. Nos últimos tempos a ideia de morte tem aparecido muito. Converso com ela, a acolho e mando embora. Digo que, embora viver seja, na maior parte do tempo um sacrifício, preciso fazê-lo pelo meu filho, que não daria conta de me perder assim. Sim, por ele e somente por ele sigo aqui. Talvez pelos meus dois cachorrinhos também. Não acho que o suicídio seja um ato egoísta. Só quem sente esta dor sabe o quanto é difícil viver. Também não acredito que Deus, os orixás e todas as forças espirituais punam quem tira a própria vida. Eles e só eles sabem o quanto de dor uma pessoa aguentou antes de chegar nesse ponto, então ela já foi punida em vida. Mas não vou morrer porque esse é meu maior ato de amor como mãe: seguir aqui. Uma amiga que amo muito e que, como filha de Iansã: forte, brava, amorosa e guerreira não desiste nunca de mim; outro dia me perguntou se eu pensava em suicídio. Achei muito corajosa. Ela trabalha na saúde mental e sabe que esse tema tem que ser abordado como qualquer outro. Achei um lindo gesto de amor, entre tantos que ela já me fez. Falei abertamente que sim, mas que não o farei. Não, não sinto culpa por pensar nisso. Não sinto mais que é pecado ser infeliz mesmo tendo tanto (e sei que tenho). Agradeço profundamente pelo que tenho e reconheço o quanto sou protegida e tenho "sorte". Mas também não tenho culpa de ter depressão. Assim como não tenho de ser hipertensa ou manca. Apesar de ser psicóloga, uma excelente psicóloga aliás, que entende de dentro as dores das pessoas sem julgá-las; nunca tentei justificar minha depressão. Não importa se ela veio porque fui abandona com 12 dias, ou porque minha mãe adotiva nunca conseguiu lidar com o fato de eu não ser o que ela idealizou. Não importa se vivi em uma família que sempre me julgou ou se sempre fui estrangeira nos lugares que estive. Fui bem amada, pelo meu pai principalmente, tive ótimas pessoas ao meu lado, estudei e tenho a profissão que sonhei. Fui muito amada por alguns homens e amei também. Tenho boas histórias para contar. Há alguns anos conheci minha mãe biológica e entendi rapidamente a carga genética da minha depressão. Ela é a pessoa mais amarga que já conheci. Em meia hora de conversa vi nela a minha distimia e soube que as doenças mentais eram comuns na sua família, sendo que sua mãe era "doida de pedra". Nessa fase de tantas dores de todos os tipos decidi entorpecer-me um pouco mais. Faço uso de prozac ou zoloft há muitos anos. Odeio sentir-me "Comfortably numb". Odeio a sensação de oco. Odeio não conseguir chorar e nem sorrir sem algum esforço. Odeio não ter libido nenhuma e viver por isso há tantos anos sem desejo e sexo. Odeio a dor de cabeça que sinto quando paro de usar estas drogas. Odeio muito! Mas odeio ainda mais chorar o tempo todo, ficar irritada com as mínimas coisas, sentir tudo o tempo todo e pensar em morte todos os dias. Seguirei entorpecida. Até porque viver nesse mundo de guerras, bolsonaros, capitalismo selvagem, imagem acima de tudo e tantas outras bizarrices, não está nada fácil. E não consigo mais viajar para o meu mundo particular. Alice saiu da toca do coelho e nunca mais voltou. Deram a ela Prozac. Por hoje, vou seguir buscando minhas pequenas salvações do dia a dia. Meus abrigos imunológicos ou esferas de proteção, como diria o lindo Peter Sloterdijk, que tem sido um companheiro importante através do seu livro "Esferas I". Seguirei agradecendo aos meus abrigos imunológicos: meu filho Igor por existir e pelo seu cheirinho, minha amiga Juliana de Iansã e seu amor infinito, o casal Ed e Van que seguram minhas mãos sempre, aos meus cachorrinhos Rock e Raul que me enchem de amor gratuito, ao Roger Waters por compor e cantar, a Exu Tiriri e Vovó Maria Conga e ao meu pai que me deu amor suficiente para que eu tivesse estoque para lidar com os dias de ausência. E assim vou seguindo e dizendo pra mim mesma: Laura "Brilhe, seu diamante louco".