domingo, 1 de junho de 2014

O segundo parto...

Há quase 40 anos, a empregada doméstica de uma família rica tem relações com o filho dessa família e engravida. Sendo só, pobre e sem ter lugar para ir, decide dar (será?) essa criança para as freiras que a acolheram no Amparo Maternal. 
Do outro lado da cidade, um casal que se ama  decide adotar uma criança, pois mesmo com tanto amor não puderam gerar seu próprio filho.
As freiras, essas pessoas amorosas e solidárias (kkkkk) resolvem unir as duas histórias, "doando" a criança recém-nascida da mãe pobre e solitária para o casal cheio de amor. E uma linda família inicia... Fim!!!
Fim? Não, apenas o início de uma história que poderia ser uma novela mexicana ou até um grande sucesso global. Poderia ser o roteiro do filme "Philomena" ou qualquer outro filme delicado. Mas é só uma história real.
E a criança? A criança nunca soube dessa história (claro, porque isso dá mais emoção ao roteiro). Cresceu com uma intuição de que não pertencia ao mundo no qual vivia, que não combinava com sua família e que alguns sinais sutis indicavam sua origem. Mas o amor que recebera dos pais abafou essa intuição, mas nunca o incômodo e sensação de não-pertencimento.
Mas, trinta e sete anos depois a verdade vem à tona (pelo menos, parcialmente) da pior forma possível.  A intuição se confirma e o incômodo se justifica. O que mudaria depois de tantos anos? Será que essa verdade explicaria o modo-de-ser dessa pessoa? Seu jeito inconformado diante das injustiças do mundo? Sua atração pela periferia e pelas pessoas amorosas e tão sofridas que lá encontra? Será que justifica sua escolha profissional e o desejo infinito de compreender e participar de tantas histórias complexas e tantas relações familiares atravessadas pela dor? Será que ao tentar ajudar o outro que sofre não estava somente tentando entender sua própria história e costurar as partes que sempre pareceram soltas? Ou será que ter se aproximado de tantas histórias de sofrimento foi necessário para que olhasse a sua própria com mais carinho e compreendesse as escolhas e atos de cada envolvido?
Respostas ainda desconhecidas... A "canção dos homens" está sendo reescrita dessa vez...
Como em um nascimento, essa pessoa passa agora pelas dores do parto, seu segundo parto, para chegar ao mundo (ir do estreito para o amplo, como diria o rabino Nilton Bonder). Tudo novo? Óbvio que não, todas as histórias, marcas, sentimentos, perdas e ganhos se mantém, como tatuagens que não podem ser removidas. Mas nasce um novo modo de existir, dessa vez, nascido da verdade.
O que mudará? Essa parte do roteiro ainda não está pronta e será escrita pelo que foi e pelo que será. História viva, que ganha sentido e novas cores no presente. 
Algo muda. O dia do começo dessa história, que após muitas comemorações no "Dia da independência dos Estados Unidos", agora será comemorado no dia real - 29/06. Só uma data? Não para quem ela diz respeito. 
Talvez outras informações devam ser buscadas, outras pessoas e lugares. Talvez não.
Talvez olhar nos olhos de quem primeiro a olhou e saber que esse olhar foi afetivo, mesmo que desesperado e que esse afeto (mesmo que breve) foi a salvação do abismo (como diria Juliano Pessanha). E que esse olhar impediu que essa pessoa fosse não-nascida e não adentrada no mundo. E formando sua primeira “esfera imunológica” (JP), permitiu que esse ser existisse e se formasse.
Talvez no próximo dia 29 essa pessoa possa comemorar seu aniversário pela primeira vez. Não com bolos, festas e barulho, mas no recolhimento do silêncio e da solidão, sentindo tudo o que significa estar ali 38 anos depois. 
Enfim... Que esse roteiro, tão delicado e ao mesmo tempo tão clichê, tenha novas linhas escritas. Não precisam ser as mais lindas, mais sensacionais, mais alegres. Que sejam apenas verdadeiras, como nunca antes.