segunda-feira, 20 de abril de 2015

Aborto tardio...

Não, não é aquele aborto que as mulheres que não desejam ser mães fazem depois do período indicado pelos médicos. Não é o ato desesperado de alguém que sabe que não será capaz de amar aquele ser que carrega.
Aborto tardio ocorre quando alguém que deveria mas não foi abortado durante a gestação, decide abortar-se tardiamente.
Quando uma mulher traz ao mundo uma criança que não desejava, concebida sem amor, causadora de muitas dores, ela dá vida a alguém desde sempre morto.
Mas, quem sabe, por uma bondade divina, esse ser nascido morto, encontre pelo caminho razões para nascer. Quem sabe, ele seja acolhido por uma família que lhe dê tanto amor que compense a sua morte existencial prematura.
Quem sabe alguém deseje sua chegada como aquela mãe que o gestou não pôde ou não conseguiu.
E se, infelizmente, sendo o mundo real tão cruel, essa criatura só conseguir encontrar desamor?
E se a família que a acolher se frustar com o produto, diferente do sonhado e cuidadosamente encomendado?
E se a mãe adotiva for tão incapaz de ser mãe quanto a biológica? E se ela, desejando apenas o título e status que a maternidade lhe trouxe, não conseguir aceitar nunca aquela criatura estranha e tão não-sua que acompanha o título?
E se o não pertencimento aquela família, aquele lugar, aquelas pessoas, aqueles sonhos, aqueles padrões forem constantemente explicitados a ela, das formas mais sutis e perversas possíveis?
E se essa criatura tão mal-vinda ao mundo sentir-se fora dele sempre? E se o incômodo pela sua infeliz chegada perpassar todas suas relações e toda sua vida?
E se essa criatura órfã se tornar mãe e não conseguir sê-lo como deveria? Se o seu filho também não conseguir vê-la como é e olhar somente o que sobrou da não desejada, não acolhida e morta desde sempre?
E se ela passar a vida se debatendo e rebatendo esses tantos golpes que levou, até o momento que cansar e desistir?
E se ela resolver fazer o que sua mãe biológica não teve coragem, abortá-la?
Um aborto de alguém que nasceu, mas nunca viveu. Um aborto que alguém faz consigo próprio.
Não, não é suicídio. Para matar-se a pessoa precisa estar viva. Quem sempre esteve morto ou quem nunca nasceu, só pode abortar-se. Isso é aborto tardio.
Tardio porque cada dia dessa existência é uma eternidade. Tardio porque ser morto fingindo-se de vivo é algo que desgasta muito. 
Mas abortar não é um ato de covardia, como dizem. Exige muita coragem matar um pedaço seu.
Tanta coragem que talvez essa criatura ainda não tenha. Talvez seu excesso de culpas e responsabilidades até com aqueles que não a amam, impeçam que faça por si o que gostaria e a obrigue a continuar aqui, nessa eternidade sem fim...



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