No universo do autismo...
Ao longo deste blog, venho descrevendo
minhas aventuras profissionais, nas quais entro em contato com universos novos,
singulares, surpreendentes e, algumas vezes, quase surreais.
Ou penetrando no
mundo dos adolescentes marginalizados, vistos apenas pelos atos infracionais
cometidos e ignorados nos seus sonhos e potenciais; ou mergulhada no sofrido
mundo dos usuários de drogas que tanto tem a viver além disso, mas pouco
conseguem; ou no complexo e amplo universo da saúde mental, desde o
paciente que sofre por amor, até aquela que me ameaça.
Muitas viagens,
inúmeras descobertas, indescritíveis emoções... Se o que nos forma e transforma
são os encontros que vivenciamos, posso dizer que estes todos me atravessaram,
penetraram e modificaram profundamente.
Mas, como sempre
escrevo aqui, me recuso a congelar. Então, estas aventuras, estes encontros e
estas transformações não cessam nunca. Ainda bem...
Atualmente, me
encontro mergulhada no universo da infância. Eu que tanto hesitei em
penetrá-lo, agora me vejo completamente absorvida por ele.
Não é fácil
acompanhar histórias em que a infância parece aniquilada por sofrimentos
psíquicos, pelas misérias ou pela violência (de diversos tipos). Sim, é mais
fácil ver um adulto sofrer, também tenho a utopia de que a infância merece ser
feita só de alegria. Mas não é...
As crianças das
propagandas, felizes, brincando, alegres no seu mundo colorido, amadas e
cuidadas por adultos responsáveis e carinhosos, não é o que vejo diariamente no
mundo real.
O que encontro são
mães que usam a doença dos filhos para ganhar benefícios do governo, doenças
muitas vezes que nem existem, mas que elas insistem em afirmar para não perder
o necessário dinheirinho.
Vejo crianças que
foram abandonadas e hoje vivem em abrigos, sem afeto, sem colo e sem proteção,
sendo taxadas de doentes porque reproduzem no ambiente a dor do abandono e das
tantas perdas que tão novos já viveram.
Conheço crianças
que são carimbadas com siglas que nada dizem como TDAH, simplesmente porque
querem explorar o mundo, porque não se contentam em ficar sentadinhas na
cadeira enquanto professores cansados, despreparados e mal pagos, falam coisas
inúteis e chamam isso de ensinar. Crianças criadas por pais e avós cansados da
vida difícil, dos tantos problemas de adultos e do mundo cruel no qual
sobrevivem e que, por isso tudo, não permitem e não aceitam o barulho, a
energia em excesso, os tantos questionamentos e a tal bagunça que estas
crianças fazem.
Solução simples que encontram tem nome –
Ritalina. Às vezes, outros mais sérios como Risperidona, Clozapina, Sertralina.
E assim, vão dopando essas crianças “com energia em excesso” e apagando seu
brilho e sua vida.
Encontro crianças que de tanta tristeza,
ficaram deprimidas ou aquelas que alucinam e deliram e são chamadas de pequenas
loucas. Mas isso devia ser mesmo doença de gente grande, não?
Meninas pré e adolescentes que se cortam,
ferem o próprio corpo porque precisam que a dor física diminua ou iniba, por
alguns minutos, a exacerbada dor emocional.
Mas, o encontro que mais tem me impactado
e transformado é aquele com o universo do autismo.
Antes dessa experiência, imaginava o
autista como aquele que se balança como um bobo, não fala, não interage e
vegeta. Horrível isso, principalmente, para uma Psicóloga.
Mas, por sorte, minhas viagens ao extremo
da zona leste vão eliminando minha ignorância e me trazendo algum conhecimento
real sobre o humano. Ainda bem...
Não, os autistas não balançam à toa. Eles
têm movimentos estereotipados e repetitivos para diminuir a entrada de
estímulos sensoriais, porque sentem e percebem em excesso.
Alguns não falam. Mas, se comunicam sim através
do corpo, dos gestos, do choro, dos tantos gritos.
Sim, eles interagem, mas quando conseguem
ou querem e isso exige uma paciência e disponibilidade do outro absurdas.
Não, eles não vegetam. Eles escutam,
sentem, percebem, pensam, sofrem e se alegram. Nem sempre deixam que o outro
saiba disso, mas no seu interior estas coisas estão sempre pipocando.
Não, não é difícil estar-com eles. Nem sempre
eles estão-com quem está ali, mas quando estão é uma alegria imensurável. Quando
saem do seu mundo ou permitem que entremos um pouquinho nele, é algo de uma
emoção sem fim.
Vale a pena ser Psicóloga quando Henrique
de 3 anos levanta os braços sinalizando querer um abraço meu, ou quando ele
gargalhou vendo uma bola pular. Ou quando Ezequiel de 10 anos, que parecia nem
perceber minha presença enquanto montava com facilidade difíceis quebra-cabeças,
um dia me chama pelo nome quando me vê chegando à recepção.
Se me perguntam por que fico mais de 4hs e
meia por dia no transporte público para chegar ao trabalho, minha resposta é simples: isso tudo
fica muito pequeno diante do abraço do Henrique e do “laura” do Ezequiel.
Sei que o lado lindo e encantador existe
para quem está fora do autismo, para os “de dentro” há um aprisionamento em um
corpo que não controlam, uma exacerbada sensibilidade a sons, odores, toque e
tudo mais que existe nesse mundo exagerado, onde o excesso ocupa todos os
espaços. Além disso, desejam, amam, sofrem e não conseguem expor isso ao mundo,
pelo menos não de uma forma que as pessoas possam entender (a maioria).
Essas ideias não tirei de nenhum livro ou
teoria mirabolante que explique o autismo, mas sim da história de uma menina
que conhece de dentro esta vivência e hoje escreve sobre isso. Quem quiser conhecer
Carly, segue o vídeo:
Acho que nenhuma “patologia” é tão misteriosa
para os doutores da Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise. Muitas elucubrações,
teorias psicanalíticas bem escritas e explicações que para nada servem.
Como sempre, a ciência e os “pensadores do
humano” pouco agregam ao mundo real.
No contato com o outro, principalmente o
outro sendo um autista, o que importa é a disponibilidade para estar-com mesmo
que o com esteja somente do lado de cá. É suportar o silêncio e dar espaço a
todas as formas de expressão. Suportar a frustração da falta de resultados
imediatos ou mesmo ausência deles. Entender que a angústia nessa relação é do terapeuta
e não do paciente. É aprender que o verbal não basta e que outras formas de contato
serão necessárias e o brincar é essencial.
E assumir uma verdade que nenhuma teoria
diz: o mundo incomoda e às vezes é preciso fugir para um mundo irreal através
de delírios e alucinações como bem fazem psicóticos ou trancar-se em um mundo
próprio onde só entram amigos imaginários, como os autistas.
Existem aqueles a quem o mundo incomoda
muito, mas tem de suportá-lo. Este buscam outras formas para isso, seja na
arte, na musica ou na escrita (alguns jogam conversa fora em blogs).
Enfim, acho que o contato com o universo
autista vem me reforçando algo que
sempre senti: o estar-com nem sempre é saudável e nem mesmo necessário e o
isolamento, a solidão são um descanso na loucura que o mundo é e está.
Para quem quiser conhecer um pouquinho do
que é estar-com uma criança autista, segue um belo vídeo sobre “A viagem de
Maria”:
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