sexta-feira, 29 de março de 2013

No universo do autismo...


Ao longo deste blog, venho descrevendo minhas aventuras profissionais, nas quais entro em contato com universos novos, singulares, surpreendentes e, algumas vezes, quase surreais.
Ou penetrando no mundo dos adolescentes marginalizados, vistos apenas pelos atos infracionais cometidos e ignorados nos seus sonhos e potenciais; ou mergulhada no sofrido mundo dos usuários de drogas que tanto tem a viver além disso, mas pouco conseguem; ou no complexo e amplo universo da saúde mental, desde o paciente que sofre por amor, até aquela que me ameaça.
Muitas viagens, inúmeras descobertas, indescritíveis emoções... Se o que nos forma e transforma são os encontros que vivenciamos, posso dizer que estes todos me atravessaram, penetraram e modificaram profundamente.
Mas, como sempre escrevo aqui, me recuso a congelar. Então, estas aventuras, estes encontros e estas transformações não cessam nunca. Ainda bem...
Atualmente, me encontro mergulhada no universo da infância. Eu que tanto hesitei em penetrá-lo, agora me vejo completamente absorvida por ele.
Não é fácil acompanhar histórias em que a infância parece aniquilada por sofrimentos psíquicos, pelas misérias ou pela violência (de diversos tipos). Sim, é mais fácil ver um adulto sofrer, também tenho a utopia de que a infância merece ser feita só de alegria. Mas não é...
As crianças das propagandas, felizes, brincando, alegres no seu mundo colorido, amadas e cuidadas por adultos responsáveis e carinhosos, não é o que vejo diariamente no mundo real.
O que encontro são mães que usam a doença dos filhos para ganhar benefícios do governo, doenças muitas vezes que nem existem, mas que elas insistem em afirmar para não perder o necessário dinheirinho.
Vejo crianças que foram abandonadas e hoje vivem em abrigos, sem afeto, sem colo e sem proteção, sendo taxadas de doentes porque reproduzem no ambiente a dor do abandono e das tantas perdas que tão novos já viveram.
Conheço crianças que são carimbadas com siglas que nada dizem como TDAH, simplesmente porque querem explorar o mundo, porque não se contentam em ficar sentadinhas na cadeira enquanto professores cansados, despreparados e mal pagos, falam coisas inúteis e chamam isso de ensinar. Crianças criadas por pais e avós cansados da vida difícil, dos tantos problemas de adultos e do mundo cruel no qual sobrevivem e que, por isso tudo, não permitem e não aceitam o barulho, a energia em excesso, os tantos questionamentos e a tal bagunça que estas crianças fazem.
Solução simples que encontram tem nome – Ritalina. Às vezes, outros mais sérios como Risperidona, Clozapina, Sertralina. E assim, vão dopando essas crianças “com energia em excesso” e apagando seu brilho e sua vida.
Encontro crianças que de tanta tristeza, ficaram deprimidas ou aquelas que alucinam e deliram e são chamadas de pequenas loucas. Mas isso devia ser mesmo doença de gente grande, não?
Meninas pré e adolescentes que se cortam, ferem o próprio corpo porque precisam que a dor física diminua ou iniba, por alguns minutos, a exacerbada dor emocional.
Mas, o encontro que mais tem me impactado e transformado é aquele com o universo do autismo.
Antes dessa experiência, imaginava o autista como aquele que se balança como um bobo, não fala, não interage e vegeta. Horrível isso, principalmente, para uma Psicóloga.
Mas, por sorte, minhas viagens ao extremo da zona leste vão eliminando minha ignorância e me trazendo algum conhecimento real sobre o humano. Ainda bem...
Não, os autistas não balançam à toa. Eles têm movimentos estereotipados e repetitivos para diminuir a entrada de estímulos sensoriais, porque sentem e percebem em excesso.
Alguns não falam. Mas, se comunicam sim através do corpo, dos gestos, do choro, dos tantos gritos.
Sim, eles interagem, mas quando conseguem ou querem e isso exige uma paciência e disponibilidade do outro absurdas.
Não, eles não vegetam. Eles escutam, sentem, percebem, pensam, sofrem e se alegram. Nem sempre deixam que o outro saiba disso, mas no seu interior estas coisas estão sempre pipocando.
Não, não é difícil estar-com eles. Nem sempre eles estão-com quem está ali, mas quando estão é uma alegria imensurável. Quando saem do seu mundo ou permitem que entremos um pouquinho nele, é algo de uma emoção sem fim.
Vale a pena ser Psicóloga quando Henrique de 3 anos levanta os braços sinalizando querer um abraço meu, ou quando ele gargalhou vendo uma bola pular. Ou quando Ezequiel de 10 anos, que parecia nem perceber minha presença enquanto montava com facilidade difíceis quebra-cabeças, um dia me chama pelo nome quando me vê chegando à recepção.
Se me perguntam por que fico mais de 4hs e meia por dia no transporte público para chegar ao trabalho, minha resposta é simples: isso tudo fica muito pequeno diante do abraço do Henrique e do “laura” do Ezequiel.
Sei que o lado lindo e encantador existe para quem está fora do autismo, para os “de dentro” há um aprisionamento em um corpo que não controlam, uma exacerbada sensibilidade a sons, odores, toque e tudo mais que existe nesse mundo exagerado, onde o excesso ocupa todos os espaços. Além disso, desejam, amam, sofrem e não conseguem expor isso ao mundo, pelo menos não de uma forma que as pessoas possam entender (a maioria).
Essas ideias não tirei de nenhum livro ou teoria mirabolante que explique o autismo, mas sim da história de uma menina que conhece de dentro esta vivência e hoje escreve sobre isso. Quem quiser conhecer Carly, segue o vídeo:


Acho que nenhuma “patologia” é tão misteriosa para os doutores da Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise. Muitas elucubrações, teorias psicanalíticas bem escritas e explicações que para nada servem.
Como sempre, a ciência e os “pensadores do humano” pouco agregam ao mundo real.
No contato com o outro, principalmente o outro sendo um autista, o que importa é a disponibilidade para estar-com mesmo que o com esteja somente do lado de cá. É suportar o silêncio e dar espaço a todas as formas de expressão. Suportar a frustração da falta de resultados imediatos ou mesmo ausência deles. Entender que a angústia nessa relação é do terapeuta e não do paciente. É aprender que o verbal não basta e que outras formas de contato serão necessárias e o brincar é essencial.
E assumir uma verdade que nenhuma teoria diz: o mundo incomoda e às vezes é preciso fugir para um mundo irreal através de delírios e alucinações como bem fazem psicóticos ou trancar-se em um mundo próprio onde só entram amigos imaginários, como os autistas.
Existem aqueles a quem o mundo incomoda muito, mas tem de suportá-lo. Este buscam outras formas para isso, seja na arte, na musica ou na escrita (alguns jogam conversa fora em blogs).
Enfim, acho que o contato com o universo autista vem me  reforçando algo que sempre senti: o estar-com nem sempre é saudável e nem mesmo necessário e o isolamento, a solidão são um descanso na loucura que o mundo é e está.

Para quem quiser conhecer um pouquinho do que é estar-com uma criança autista, segue um belo vídeo sobre “A viagem de Maria”:






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