sexta-feira, 27 de julho de 2012

Mais um começo...


" ... sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que cheguei à porta de um começo." (Clarice Lispector)

Mais uma vez, "chego à porta de um começo". Mais um fim, mais um recomeço.
Não lamento nem uma coisa nem outra, gosto de recomeçar. Mas, a forma como o fim chegou dessa vez tem me causado alguma dor.
Fui agredida verbalmente por uma paciente do Caps no qual atuo, quase agredida fisicamente e ameaçada de ser “pega na saída”.
Ouvi de alguns que isso é normal em um serviço que atende dependentes químicos e pacientes psiquiátricos e não devia me preocupar. Mas, o que é normal afinal?
Será que essas pessoas queriam dizer que é natural, esperado e até banalizado? Que não devemos estranhar quando um paciente age dessa forma porque eles só podem ser assim mesmo? Ou será que nem a violência consegue tirar algumas pessoas do seu coma e completo entorpecimento?
Eu, que nunca fico entorpecida e sofro do mal de sentir demais e ser atravessada por tudo que me toca, não consegui banalizar este ato de violência.
Primeiro, porque temo pela minha vida e integridade. Gosto bastante de viver e não coloco minha vida na bandeja. Segundo, porque a violência é algo que diz muito sobre o humano, as relações e os serviços. Não dá para ignorá-la.
Nestes longos 5 meses em que permaneci neste Caps, acompanhei todos os tipos de violência. A violência física de um marido contra uma esposa. A violência sexual de um paciente contra outra paciente. A ameaça de um traficante contra uma adolescente de 13 anos que lhe devia. A violência de uma paciente contra mim.
Em todos estes casos a verdade do paciente foi questionada. A primeira por ser uma paciente histérica (quase saída de um livro de Freud) a quem ninguém dava crédito porque costumava dramatizar demais. A segunda porque era diagnosticada com retardo mental e podia ter inventado o tal estupro, afinal, é impossível tal crime acontecer em um serviço tão humano como o Caps. A terceira porque a adolescente era mentirosa (como todos, alguns diriam). A quarta, porque a paciente só estava nervosinha e falou da boca pra fora, apesar do seu longo histórico de crimes e de não ter nada a perder com mais um no currículo.
Me pergunto: Por que sempre duvidam das falas dos pacientes? Por que sempre acham que é drama ou fantasia? Por que negam a eles o direito básico de serem ouvidos? Por que saem do papel de cuidadores (sejam psicólogos, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou enfermeiros) para entrarem no papel de investigadores tentando descobrir a veracidade da denúncia?
Não é esse nosso papel, ou então estamos, definitivamente, no lugar errado.
Nos casos que relatei havia algumas mentiras, talvez fantasias e dramatizações. Mas, isso não muda o fato de que, naquele momento, as histórias eram reais para quem as contava e, por essa razão, precisavam ser ouvidas, compartilhadas e cuidadas.
Tenho certeza que, nestes casos, cumpri o meu papel. Indo à delegacia de mulher acompanhar a tal histérica; brigando com todos (até com quem não podia) para proteger a "retardada"; ficando até tarde no trabalho para acompanhar a "mentirosa" e acreditando que a "louca" pode mesmo me ferir.
Se eu não puder acreditar no que meus pacientes dizem, para que vou ouví-los então?
Se a minha verdade sempre superar a deles, como poderei ajudá-los?
No filme “A garota ideal”, o personagem do lindo ator Ryan Gosling se apaixona e se relaciona com uma boneca. Todos se espantam. O irmão não se conforma e busca a terapeuta da cidadezinha para uma orientação. Ela diz que ele deve aceitar a “namorada” do irmão, porque para ele, ela é real. Ponto.
Todos acolhem seu delírio e passam a se relacionar com ele através disso. Todos acolhem o novo casal com carinho e compreendem que aquele homem precisa daquela “garota”.
Lindo filme e belíssimo exemplo de que o real do outro (seja ele louco ou não) é real mesmo para ele e não adianta questioná-lo.
Por que então em um serviço, supostamente, humanizado; democrático; aberto às diversidades e criado para dar voz aos excluídos ainda tem profissionais que ignoram ou tentar calar o que os pacientes gritam?
Quando escrevi acima “histérica”, “retardada”, “mentirosa” e “louca” a patrulha dos politicamente corretos pode ter ficado indignada com a minha falta de respeito. Ridículos!!! A falta de respeito real está em desprezar o que estas pessoas sentem, dizem ou inventam. Inventar é um jeito de suportar o mundo, o real e a dor.
Saio deste trabalho com a mente agitada, mas o coração tranquilo. Provavelmente, serei transferida para outro Caps. Provavelmente, encontrarei pessoas e histórias muito parecidas. Provavelmente, encontrarei colegas que também duvidarão da verdade deles. Mas, com certeza, manterei o que acredito, custe o que custar.
Se “justamente a mim, coube ser eu” como diria Clarice, defenderei isso que sou até o fim.
E “Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida”(Clarice). Intensamente vivida. Ainda bem...
Às vezes choro, me machuco, sofro, perco noites de sono, arrumo inimizades, entro em confrontos, perco oportunidades. Mas também rio, me encanto, crio vínculos, faço amigos, ganho novas chances.
Ser intensa e autêntica tem um preço, que pago com prazer. Pois, só assim posso mergulhar nas histórias que ouço e compreender as pessoas que em mim buscam escuta, conforto, compreensão e cuidado.
Não quero ser superficial, nem apática, nem indiferente a dor do outro. Se isso um dia acontecer, volto a ser bancária e abandono de vez minha amada Psicologia.
Porém, quando o outro que tento ajudar quiser me agredir, vou me afastar. Não cuidarei de ninguém, sem antes cuidar de mim. Isso é óbvio, não é?
Por isso, esta história chega ao fim, “às portas de um começo”.
Agradeço por tê-la vivido. Me orgulho da intensidade com a qual a vivi. Me orgulho da forma como me aproximei, verdadeiramente, daquelas pessoas e das suas feridas, que, muitas vezes, se tornaram minhas também.
Quem não consegue se sensibilizar diante da dor do outro (seja ele paciente ou colega) não deveria atuar na saúde mental. Ser bancário é a minha sugestão.
Quanto a mim, só tenho um medo que não me abandona:
“Só receio uma única coisa neste mundo – os momentos em que a vida se congela dentro de mim.” (Marina Tsvetáieva)
Que eu nunca me congele...


P.S.1: Assisti à belíssima peça "Estamira: Beira do mundo" e relembrei uma frase desta maravilhosa pessoa e personagem que resume tudo o que tentei escrever neste texto: 
"Tudo que se imagina, tem, existe, é". É isso...

P.S.2:  Dedico este desabafo às colegas que estiveram, verdadeiramente, ao meu lado nesta caminhada: Leny, Júlia, Pri e Ari. Que vocês também nunca se congelem...


2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Oi Laura,
amei seu texto!
Me fez lembrar a nossa conversa de ontem e um texto que eu li hoje, que dizia "o mundo a que o paciente se refere, para ele é tão real quanto é, para nós, o mundo que vivemos.". O paciente pode estar sozinho e é preciso darmos voz a esse sujeito....
Foram 5 meses muito intensos! Obrigada pela companhia, por compartilhar luta e indignação.
Te considero uma grande amiga!! Conte sempre comigooo!

Beijo
Julia

Obs: Minhas caraminholas são muito resistentes e possuem grande poder de procriação kkkk congelar nunca!

27 de julho de 2012 às 20:43  
Blogger Laura disse...

Júlia,

Obrigada por tudo!!!
Foi muito bom compartilhar tantas coisas com você neste período, principalmente, essa luta pelos direitos dos nossos pacientes, sejam eles adultos, adolescentes, infratores, dependentes ou "loucos". São humanos antes de tudo.
Que suas caraminholas resistam e se procriem sempre. Mesmo que isso custe algumas lágrimas e tantos embates.

Ainda estaremos juntas em muitas batalhas...

Bjs. Laura

28 de julho de 2012 às 05:34  

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