terça-feira, 24 de maio de 2011

Uma solidão singular. Será?!

Ontem encerrei meu estágio no Hospital Psiquiátrico. Foram alguns encontros de muitas descobertas e um profundo mergulho no mundo singular das "doenças mentais".
Conheci pessoas inesquecíveis: Francisco, Ana, Silas, Roni, Fábio... Pessoas com histórias de sofrimento; abandono; solidão e muitas internações psiquiátricas. Alguns só queriam voltar para casa; outros não sabiam para onde voltar e outros acreditavam que os muros do Hospital ofereciam um acolhimento que eles não teriam (ou não tiveram) do lado de fora.
Hoje escrevo sobre um paciente que se encaixa neste último caso: Fábio, 19 anos, internado há 03 meses por alguma questão psiquiátrica que não definimos e o abuso de drogas.
Ele começa sua história dizendo: " Minha mãe morreu, minha tia morreu, minha avó morreu. Eu morri."
Esta última frase, definitivamente, não combinava com a imagem que víamos: um jovem saudável, bonito e atlético. Mas devia combinar com algo, pois era assim que ele dizia se sentir. Como deve ser estar vivo e sentir-se morto?
Continuamos a ouví-lo.
Ele descreveu suas inúmeras desventuras. A longa doença da mãe, que ele acompanhou de perto até o fim. As perdas de outros familiares importantes. As brigas familiares pela casa na qual morava (herança da avó). A traição de uma namorada. A agressão que sofrera em um grupo religioso que freqüentava. O uso e abuso de drogas. Suas internações. O abandono da família. A solidão.
Em meio a estes relatos, ele repetia: “A vida é dura!”
Quem ali poderia dizer a ele que não?
Fábio se esforça para entender e justificar porque sua família é tão ausente. Porque eles não lhe oferecem um lugar. Não seria um lugar para morar (casa ele já tem), mas um lugar de afeto; carinho; acolhimento; apoio; presença.
Ele chora.
Mas... ele fala de planos também. Ele tem esperança.
Fábio gosta de música (tocava atabaque), gosta de pagode, quer voltar a namorar, gosta de lutar boxe (já foi pugilista), quer muito voltar a trabalhar. Ele quer muitas coisas...
Ele diz: “Sou só um adolescente e é tudo tão difícil.”
O que dizer???
Fábio voltou para uma segunda entrevista ( por vontade própria, já que isso não era comum neste estágio). Ele estava alegre, radiante. Contou que estava de alta e já podia ir embora. Todos ficaram felizes por ele...
Mas... ele diz: “ Não sei se quero sair ou ficar aqui.”
Não entendemos. Como alguém tão jovem e cheio de planos, pode querer ficar enclausurado naquele lugar? O que pode ser pior do que ficar ali?
O mundo real. As pessoas. A solidão. Para Fábio tudo isso é pior do que estar ali.
Ele diz que ninguém apareceu ainda para buscá-lo, que não sabe para onde ir. E continua: “Ficar sozinho é muito ruim.”
Com certeza, ele sabe o tamanho da solidão que tanto teme.
Fiquei pensando como os muros de uma Instituição como aquela podem ser mais acolhedores e oferecerem mais proteção do que seres humanos, do que uma família.
Existem muitas explicações teóricas para isso. Explicações psicológicas e até médicas. Mas, nenhuma delas alcançaria a totalidade da dor e do desamparo que transbordavam na fala de Fábio.
Acredito que, assim como o amor, as dores mais profundas nunca terão explicação.
Tomara que o Fábio encontre alternativas para sua solidão. Tomara que ele não permaneça ali e que o mundo se apresente mais generoso; confiável; humano e colorido para ele. Tomara....

Essa história me fez lembrar um belíssimo filme que recentemente assisti: “ A vida secreta das palavras”. Nele, uma mulher calada, misteriosa, solitária, com problemas de audição (que desliga o aparelho quando não quer ouvir demais) decide esconder-se do mundo em uma plataforma de petróleo, no meio do nada, com alguns poucos tripulantes.
Ela fica responsável pelos cuidados de um enfermo, um sobrevivente como ela. E, a partir desta inesperada relação, construída através de muitos silêncios, fortes diálogos  e toques sutis, duas pessoas vão reconstruindo suas histórias; se livrando de algumas culpas; curando suas feridas e minimizando a quase insuportável solidão.
Às vezes o silêncio oferece mais companhia, acolhimento e presença do que mil palavras sem sentido. Outras vezes, as palavras são fundamentais: “Somente mediante a fala é que a existência começa a ter alguma tangibilidade” (Critelli, 2007)
Na fala que o homem se revela, explicita-se e pode captar o significado de suas experiências, “pois à medida em que se expressa, ele se transforma, exercitando a sua possibilidade de um construir-se, de um vir-a-ser constante. É a angústia que ao se revelar, encontra o outro, o ser do outro. E na medida em que a sua experiência se abre pra o ser-com, coloca-nos como parte dela.”  (Dutra, 2002)
Para a autora, o ato de contar uma experiência não se restringe somente a dar a conhecer os fatos e acontecimentos de uma vida, mas sim uma forma de existir com-o-outro, com-partilhar o seu ser-com-o-outro.
Uma forma de diminuir a solidão...

Laura

Referências:
- Critelli DM. Analítica do sentido: Uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: Brasiliense, 2007


 

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial