quarta-feira, 4 de maio de 2011

Vamos pensar um pouco?!



Hoje escrevo sobre algo que foge ao tema deste blog (ou não).
Vou falar sobre algumas histórias de vida inesquecíveis que tive o prazer de conhecer e acompanhar.
Acabo de me desligar de um trabalho de atendimento a adolescentes que cumprem Medida Judicial de Liberdade Assistida, que é uma das medidas possíveis para os adolescentes ( e não menores) que cometem algum ato infracional ( e não crime).

Saio não pelo trabalho em si, mas pela falta de ética e compromisso da ONG na qual estava. Quem tiver interesse em entender um pouco disso, recomendo o filme: “Quanto vale ou é por quilo”.

Alguns devem pensar: Que trabalho horrível. Outros, devem se questionar: A pessoa estuda tanto pra isso?Ou ainda: Que coragem trabalhar com estes "marginais"!.
Pois eu diria: Que experiência incrível eu vivi! Que pessoas maravilhosas conheci! Quanto aprendi sobre o humano!
Conheci adolescentes heróis, não porque salvaram vidas alheias, mas porque conseguiram salvar a própria e sobreviver a coisas que a maioria não conseguiria. Adolescentes invisíveis, que nunca foram vistos nas suas escolas, nas famílias, nos grupos e, principalmente, na sociedade da qual todos nós fazemos parte.
As escolas não sabem lidar com as especificidades do adolescer: seus questionamentos incômodos; sua crítica exacerbada; sua rebeldia e dificuldade em caber nos padrões sociais e sua necessidade de aparecer. Infelizmente, as escolas ainda esperam alunos calados; imóveis; subservientes e submissos.
Pergunto: Como queremos formar pessoas pensantes e críticas,  com escolas tão limitadas e limitadoras?

A família... esta instituição que deveria ser formadora...
Quantos pais ausentes (na maioria das vezes, nem seu nome consta no RG); quantas mães perdidas sem saberem o que fazer para garantir a alimentação dos filhos (que nem sempre são poucos) e ainda educá-los. Mas, como mesmo se faz isso?

E a sociedade, que vergonha fazer parte dela.
Como a sociedade vai olhar para estes adolescentes e oferecer um lugar de pertença a eles, se já formou opiniões preconceituosas e estereotipadas sobre todos? Como contar com uma sociedade que deveria criar espaços para eles, se todos vivem lutando para excluí-los? Como achar que estamos em uma sociedade evoluída, se a maioria das pessoas quer ver a juventude (só a pobre) morta ou presa? Que sociedade tribal é esta que acha certo enfiar meninos em processo de desenvolvimento, com infinitos potenciais em instituições desumanas e limitadoras como a Fundação Casa (FEBEM)?
Quem já visitou uma Unidade dessas?
Eu já. Como é triste ver a nossa juventude ali  trancafiada... Que lugar frio (em todos os sentidos). Que sensação horrível ver as grades fechando em cada ambiente visitado. Que triste ver os adolescentes tendo sua singularidade extirpada, sendo massificados e massacrados. Não acreditem na Revista Veja. A Fundação Casa não é um local de educação e ressocialização. Nunca será. Quem já leu Foucault, sabe disso.
Que pena que as pessoas acreditem em vermes que aparecem na televisão vomitando agressões contra tudo e todos e formando uma legião de ignorantes, que não sabem o que estão fazendo quando seguem e propagam suas palavras.
Adolescente infrator tem que morrer! Esses ignorantes diriam. Eles não têm jeito não! Continuariam... Que tristeza!
Vou contar algumas histórias que tive a honra de acompanhar nestes 9 meses de trabalho. Histórias reais, de pessoas reais, num mundo real. Um mundo que não é tão colorido como gostamos de acreditar e nem tão nebuloso como estes hipócritas gostam de divulgar.
São histórias sobre adolescentes comuns, com desejos comuns e histórias singulares. Por motivos óbvios, não informarei os nomes deles.
1 – E. , 17 anos. Conviveu anos com um pai viciado em crack, que espancava e cometia outros abusos contra sua mãe sem que ninguém nada fizesse. Não consegue perdoá-lo. Sente ódio (quem não sentiria?).
Hoje: estuda, faz curso de Hotelaria no SENAC, namora e quer ter um emprego para ajudar a mãe. Sonho: Ser pai.
2- A.S., 15 anos. Gosta de vídeo game; funk e animais. Quer ser Médico Veterinário para cuidar de cavalos e bois. Começou a usar maconha com 11 anos, porque queria diversão. Não consegue largá-la. Acha que não é viciado, mas não consegue deixar de usar a droga.
Hoje: tem picos de uso, ficando curtos períodos sem e voltando a consumir em excesso, em seguida. Parou de estudar e perdeu a vaga em um curso de Violino. Sonho: Aprender a tocar bateria.

3 – A., 17 anos. A mãe desapareceu quando ainda era criança e o pai morreu. Foi criado pela avó e passou grande parte da vida medicado com ansiolíticos e antipsicóticos, sendo que nunca fora diagnosticado. Apenas fora definido como “deficiente mental”. Não pode viver com a avó, porque está ameaçado na favela local. Vive nas ruas. É muito vaidoso e o que mais o incomoda é não poder tomar banho e fazer a barba. Sonho: Ter uma casa para morar.

4 – F., 16 anos. Reside com a mãe e os dos irmãos em um barraco de madeira, com um cômodo e nenhuma iluminação natural. Tem procurado uma atividade profissional, mas as empresas não o aceitam porque cometeu um ato infracional. A escola não queria aceitar sua matrícula pelo mesmo motivo. Agora ele está estudando e sendo elogiado pelo seu desempenho. Sonho: Ser aceito.

5 – T. 16 anos. Vive em Abrigo (antigo Orfanato). O pai foi assassinado quando ele tinha 4 anos e estava no seu colo. A família demorou 40 minutos para conseguir tirar a criança dos braços do pai morto. A mãe é foragida da polícia. A família não o quer porque ele já aprontou muito na vida. Ele quer trabalhar, voltou a estudar. Sonho: Viver em família.

6- I., tinha 16 anos. Inteligente, extrovertido, líder nato, crítico, questionador e muito carismático. Tinha um filho de 02 meses – Brian e queria ser como o pai que ele perdeu há anos. Cometeu alguns erros e foi torturado e assassinado no final do ano passado. Dizem por aí que foi morto pela polícia. Tinha muitos sonhos...

Poderia descrever outras tantas histórias, mas paro por aqui.
Alguém pode pensar que ficou faltando o motivo do ato infracional deles. Seria roubo, tráfico, homicídio ou o quê?
Não importa. Nenhum deles pode ser definido apenas pelo erro que cometeu. Por esse, eles já foram julgados e condenados pela autoridade a quem isso compete.
A sociedade não precisa julgá-los e condená-los também. Não precisam ser apontados eternamente pelo erro cometido.
Precisam ser incluídos, acolhidos, respeitados, seus potenciais valorizados e suas escolhas ampliadas.
Acredito que cada um é responsável pelo próprio ato. O ser humano sempre terá o livre-arbítrio. Contudo, a opção de escolhas varia de acordo com as condições na qual a pessoa está.
Indiscutivelmente, estes adolescentes que conheci não têm as mesmas opções que os filhos da classe média.
Com certeza, é mais fácil não se envolver em atividades ilícitas quando se mora em uma casa confortável, com condições mínimas de higiene, boa alimentação, uma família afetuosa, uma escola adequada com professores interessados e boas perspectivas de futuro.
Não acredito que uma sociedade cheia de Robins Hoods seria a solução. Mas será que é justo uma família viver em uma mansão de milhões e outra viver em um barraco de madeira. Será que é justo um jovem de 21 anos ter 30 carros importados na garagem (como vi recentemente em um jornal global) e outro jovem não conseguir nenhuma colocação profissional porque é negro, pobre ou mal vestido?
E aquele velho argumento de que quem tem fez por merecer e quem não tem é vagabundo, não convence mais.
Atendia muitas mães que trabalhavam 8, 10, 12 horas por dia, em casas de família (quase como escravas); fábricas ou cozinhas industriais e não conseguiam, com seus mínimos salários, garantir o básico para seus filhos.
Quantos jovens bem nascidos, que hoje acumulam verdadeiras fortunas gastas com baladas, roupas e até drogas, não teriam nada disso se dependessem do seu próprio esforço e trabalho.
Quantos destes jovens da classe A ou AA são os que mantêm os "meninos pobres" no tráfico de drogas? Afinal, se tantos meninos de 10 anos em diante estão entrando para o tráfico é porque tem muitos consumidores por aí e estes não estão na favela. Estão nas universidades, nas baladas caras, nas grandes empresas.
Estes jovens que mantêm o tráfico vivo são filhos daqueles hipócritas que dizem que todo traficante deveria morrer. Mas quem vai fornecer drogas aos seus filhos se eles morrerem?
Enfim.... muitas reflexões podem ser feitas sobre tudo isso. Basta as pessoas “engavetarem” seus pré-conceitos, pré-julgamentos, sua ignorância e hipocrisia para enxergar o que existe, o que é fato o que acontece na vida real, logo ali do nosso lado. Será que conseguirão?

Continuarei na luta pelos direitos das crianças e adolescentes, onde quer que eu esteja. E convido a todos que pensem nessa possibilidade também.
Afinal, o mundo em que nossos filhos viverão é o mesmo em que estas crianças e adolescentes que ignoramos também estarão. Todos merecem um mundo melhor, menos desigual, mais justo e menos hipócrita.

Pensem: O ser humano é sempre inacabado, incompleto, pronto para desconstruir-se e reconstruir-se. O ser humano não é, ele está. Como pensar então que um adolescente não pode mudar?

Nas palavras de Paulo Freire:
" Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu "destino" não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade." ( Pedagogia da Autonomia - p.52)











2 Comentários:

Blogger Debora Elianne disse...

Não tenho palavras para descrever o que senti ao ler suas reflexões. Sou, sempre fui e com certeza sempre serei afetada pelas questões humanas, principalmente estas que são no fluxo do cotidiano vivido por todos nós, ainda que muitos relutem em ver. Questões do mundo, questões de gente, questões de sentidos da existência. Questões da vida como ela é e não do mundo acadêmico, das pessoas que acham mas não vivem, das pessoas que escrevem mas não sentem.

Vamos recorrer a cultura para continuar pensando.....

Oya (canto De Oração)Oya (canto De Oração)
Sensação
Composição : Carica / Prateado

Oya
É o povo de cá pedindo pra não sofrer
Nossa gente ilhada precisa sobreviver
E levantam-se as mãos pedindo pra Deus, Oya
Já não se vive sem farinha e pirão não há
Não haveria motivos pra gente desanimar
Se houvesse remédio pra gente remediar
Já vai longe a procura da cura que vai chegar
Lá no céu de Brasília estrelas irão cair
E a poeira de tanta sujeira há de subir
Oya
Será que a força da fé que carrega nosso viver
Pode mover montanhas e jogar dentro do mar
Tanta gente de bem que só tem mal pra dar
Será que a força da fé que carrega nosso viver
Pode mover montanhas pra gente poder passar
É a nossa oração pedindo pra Deus
Oya

Debora Elianne

7 de maio de 2011 às 13:37  
Anonymous Anônimo disse...

Suas reflexões são de uma indescritível sensibilidade!

REalmente as mudanças acontecerão a partir do momento que cada pessoa transformar-se, permitindo-se o olhar voltado ao outro e não mais apenas para si.
A empatia é um dom humano! Pena que tão pouco praticado.

Mas, são profissionais e, assima de tudo, seres Humanos como você Laura que contribuem para a ocorrência de transformações significativas, positivas e relevantes para além do visto.

Parabéns!

Grande beijo,
Isabel Souza

27 de março de 2012 às 18:58  

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